FRIEDRICH RATZEL
Friedrich
Ratzel (1844-1904) é considerado por muitos o fundador da moderna
geografia humana, sendo responsável também pelo estabelecimento da geografia
política como disciplina.
A abrangente produção
ratzeliana deixa transparecer a integração de fatos da modernidade e do rápido
desenvolvimento da sociedade no contexto da Alemanha que se unificava.
Reflexões sobre o Estado, a história, as raças humanas, o ensino da geografia e
a descrição de paisagens perpassam a obra do geógrafo, que se preocupava em
auferir uma identidade comum à nação em formação. No Brasil, é o Ratzel
determinista que se destaca na produção historiográfica da geografia, resultado
da leitura da obra ratzeliana através da literatura francesa, sobretudo da obra
de Lucien Febvre - La Terre et L’Évolution Humaine (1922)
- que estigmatizou a pecha de determinista para
Ratzel em contraposição ao possibilismo de Vidal de la Blache,termo cunhado pelo
próprio Febvre (cf. Moreira, 1989:32 e Moraes, 1990:13). Ratzel inicia sua
carreira acadêmica em 1866 como zoólogo, interesse despertado pelo considerável
impacto da obra de Charles Darwin na Europa, e de seu discípulo alemão Ernst Haeckel.
Correspondente do jornal Kölnische Zeitung desde
1868, Ratzel teve a oportunidade de viajar pelo sul da França, pela Itália e
pelo leste Europeu. Em suas impressões sobre natureza e paisagem, ocupação
humana e nacionalidade, pode-se perceber a mudança do cientista natural para o
geógrafo. De 1873 a 1875, Ratzel trabalha como correspondente na América do
Norte, percebendo o surgimento de uma nova sociedade através do ambiente
antrópico e de seu uso, e prevê um futuro essencialmente urbano para a
sociedade moderna, no bem e no mal. O interesse pelo estudo da migração chinesa
(Die chinesische Auswanderung, 1876),
com o qual completa sua qualificação acadêmica, foi também suscitado na sua viagem
à América.
De 1875 a 1886,
Ratzel leciona geografia na Politécnica de Munique, combinando seu vasto conhecimento
da literatura da disciplina com a riqueza, de dados e informações obtidos em
suas viagens e pesquisas de campo. Geografia física, geografia regional dos
continentes, geografia humana e política foram todos temas dos cursos mais
substanciais. Em 1886, Ratzel transfere-se para a Universidade de Leipzig, onde
permanecerá até sua morte, em 1904. Jean Brunhes, Ellen Semple, Hans Helmolt e
Alfred Hettner foram alguns dos mais ilustres estudantes e orientandos de
Ratzel nesse período. O geógrafo divide seu tempo trabalhando na formação de
professores
para as escolas
públicas e no fomento de aulas de geografia nessas escolas, publicando o livro didático
Deutschland (1898) para combater a aspereza das
aulas de geografia e “despertar a vontade de obtenção de um conhecimento e de
uma concepção da terra natal (Heimat) não
envolvidos apenas com o intelecto” (citado por Buttman, 1977: p. 83). Em
Leipzig, Ratzel vai também aprofundar seu conhecimento filosófico através dos
encontros com o chamado “Círculo de Leipzig”, um grupo de intelectuais
interessados sobretudo na obra de Leibniz, que terá influência marcante na
produção ratzeliana dos últimos anos de sua vida. Em linhas gerais, a obra de
Ratzel é uma tentativa de superar uma geografia puramente descritiva e de
avançar na formulação de grandes construções explicativas, onde o “sentido de espaço”
(Raumsinn) ocupa lugar primordial. Das fecundas ideias ratzelianas, destacam-se principalmente:
1) O estudo dos
efeitos recíprocos entre o homem e seu ambiente, onde o homem teria um duplo posicionamento:
ativo, na medida que transforma, através de seu trabalho, a superfície terrestre,
e passivo, na sua dependência das condições naturais, que seu espaço vital (Lebensraum)
lhe impõe (Anthropogeographie, vol.
1, 1882);
2) O papel importante
desempenhado pela cultura e pela difusão cultural (Völkerkunde,
1885-8);
3) As relações entre
o homem e a natureza devem ser compreendidas não somente sob o ângulo da
mediação técnica ou econômica (trabalho, progresso), mas também, e sobretudo,
levando se em consideração a mediação política: Ratzel compara o Estado a um
organismo (Politische Geographie,
1897). No entanto, o “organismo” político a que Ratzel se
refere difere da estrutura rudimentar do organismo biológico, na medida em que
expressa a unidade orgânica do homem e da Terra, incluindo todos os objetos
perceptíveis, materiais e imateriais, vinculando-se ao conceito da unidade (Ganzheit)
de matriz romântica;
4) A importância
básica da geografia física para toda a pesquisa geográfica (Die
Erde und das Leben, 1901-2);
5) A descrição
artística da natureza e da paisagem deve preencher tanto as necessidades científicas
como as estéticas (Über Naturschilderung, 1904).
O texto de Ratzel
aqui traduzido - “Freunde, im Raum wohnt das
erhabene nicht!” (Amigos,o sublime não mora no espaço!)
- foi publicado em 1903 no periódico Glauben und Wissen (Fé
e Saber) e insere-se no primeiro volume da obra póstuma Kleine
Schriften von Friedrich Ratzel (Pequenos escritos de Friedrich
Ratzel), organizada por Hans Helmolt, em 1906. Trata-se de uma coletânea de
cerca de 86 artigos publicados em diversos periódicos de 1867 a 1904, que conta
ainda com uma biografia escrita pelo organizador e de uma bibliografia
levantada por Viktor Hantzsch. Nesses artigos, encontra-se ora um Ratzel
reflexivo, ora inflamado, ora crítico.
Despojado da rigidez
acadêmica, da preocupação da sistematização do pensamento geográfico enquanto
disciplina, como em suas principais obras - Anthropogeographie
e Politische Geographie
-, aflora, nos Kleine Schriften, um
Ratzel multifacetado, engajado politicamente, envolvido com questões
filosóficas, artísticas e religiosas. Os artigos tratam desde a anatomia do Enchytraeus
vermiculares a considerações sobre a fisionomia da Lua, glaciologia,
etnografia, história, colonialismo na África, paisagens, panoramas, fotografia,
escritos biográficos, geografia política, cidades, nacionalidades e raças.
A seleção deste texto
em particular para ser traduzido, dentre tantos, deve-se à curiosidade suscitada
pelo momento em que foi produzido, a chamada fase “madura” da obra ratzeliana.
A humildade intelectual subjacente ao questionamento que Ratzel se permite
fazer, em que busca explorar “as contradições da visão do mundo entre
conhecimento das ciências naturais e fé cristã” (Buttmann, 1977:102), propiciou
a sintonia com seu pensamento, o encontro, a mediação entre seu mundo e o
atual. Nesse texto, o geógrafo faz uma profissão de fé, reconhece o
intransponível, o insondável, mas não toma, perante este fato, uma atitude
niilista. Apenas está consciente da existência de limites que, longe de
provocarem-lhe desânimo, incitam-no a prosseguir seu caminho. No momento atual,
em que se repensam os caminhos e descaminhos da atividade científica e do projeto
da modernidade, e o lugar da geografia nesse contexto, a reflexão ratzeliana é
digna de atenção.
OBS:( LUCIANA DE LIMA MARTINS - Mestre
(1993) e doutora (1998) em Geografia pela UFRJ, desde 1999 trabalha como
pesquisadora do Grupo de Geografia Social e Cultural de Royal Holloway,
Universidade de Londres. A Introdução baseia-se principalmente em Martins
(1993). A autora
agradece a inestimável ajuda do prof. Ferdinand
Reis, sem a qual a tradução do artigo de Ratzel não se viabilizaria).