POLÍTICA DE RATZEL E LA BLACHE
Em
primeiro lugar, é muito importante perceber que “Geografia Política”, na
interpretação
que La Blache faz a partir do comentário da obra de Ratzel, torna-se bastante distinta
da concepção que dela construímos nos nossos dias. Em suas próprias palavras,
numa nota do presente artigo, o autor afirma:
A
geografia política constitui, em sentido estrito, um desenvolvimento especial
da
geografia
humana. Nas aplicações da geografia ao homem, trata-se sempre do homem por
sociedades ou por grupos, de modo que se pode crer autorizado a dar ao nome de geografia
política um sentido mais amplo, e estendê-lo ao conjunto da geografia humana. (VIDAL
DE LA BLACHE, 1898)
De saída
observa-se que La Blache, ao ampliar a noção de Geografia Política, estendendo-a
“ao conjunto da geografia humana”, diminui o peso da questão fundamental analisada
por Ratzel em sua “Geografia Política”: a relação entre o Estado e o espaço, o
“solo”. Aliás, mais do que o debate sobre o Estado, o texto de La Blache
enfatiza o da “sociedade”, da “humanidade” ou dos “grupos humanos” em sua
relação com o espaço, a natureza. Assim, a grande questão se torna, de forma
genérica, os vínculos entre o homem e o meio, a sociedade e a natureza, e não,
de forma mais específica, entre o Estado e o espaço, como defendia Ratzel: “ o
que permanece por fazer, a partir de agora, a fim de alçar a um nível superior
o conjunto da geografia política, somente pode vir do estudo comparativo das
relações que empreendem o Estado e o solo”. (RATZEL, 1988 - 1897)
A
“guinada” lablacheana faz com que a centralidade dada por Ratzel ao Estado seja
substituída pela relação mais geral entre a sociedade, o homem, o meio,
a natureza. Em outros termos, ainda mais amplos: em última instância, é sobre a
unidade entre a Geografia Física e a Geografia Humana que La Blache se refere,
pelo menos na primeira parte do seu texto. Vidal de La Blache demonstra em
vários momentos a sua preocupação com a cientificidade da Geografia,
preocupação que, ele ressalta, é partilhada com Ratzel, pois este “procura
agrupar os fatos e extrair leis, a fim de colocar à disposição da geografia
política um fundo de ideias sobre o qual ela possa viver”. (p. 98 no texto
original) A diferença é que o racionalismo ratzeliano é mais enfático, enquanto
para La Blache, “na mobilidade perpétua das influências que se intercambiam
entre a natureza e o homem seria sem dúvida uma ambição prematura querer
formular leis”, embora ele reconheça que “princípios de método” estejam se revelando.
(p. 111) A sua preocupação primeira é no sentido de “adaptar” os “fatos da
geografia física” aos da “geografia política” (entendida como geografia
humana). O autor lembra que esta empreitada foi buscada por Ratzel a partir da
constatação da necessidade de agrupar e coordenar os fatos “esparsos” da
geografia política em sua relação com a geografia física. O problema é que, na busca
destas “leis” podemos “provar algumas hesitações”, pois há “proposições que
parecem apresentar uma forma dogmática com pouca relação com a relatividade dos
fenômenos” (p. 99). É aqui que La Blache abre a discussão diante da qual vai
posicionar seu “relativismo” para compreender as relações entre sociedade e
condições naturais e para o qual, bem mais tarde(1922), o historiador Lucien
Febvre irá cunhar de forma simplificada o termo possibilismo. La Blache, em
meio a muitos elogios, desenvolve uma crítica sutil, que nunca explicita claramente
o “dogmatismo” de Ratzel. Ele parece enfatizar a necessidade de definir melhor
o campo da geografia política através de sua relação com a geografia no seu
conjunto. A ampla gama de “observações e de fatos”, destacados na obra de
Ratzel, só poderá ser devidamente aproveitada à luz de uma definição clara da
geografia política, “tomando precisa a natureza da relação que a une ao
conjunto da geografia”. Pois é desta relação que “depende o método a ser seguido,
em particular o discernimento a ser praticado entre os fatos que ela deve
reivindicar como seu patrimônio, e aqueles que ela deve eliminar como parasitas”.
(p. 99) La Blache, aqui, parece colher ao mesmo tempo os louros e os dilemas de
sua opção por uma geografia política em sentido amplo, liberta das
especificidades da questão do Estado. A vantagem desta abordagem é que ela abre
amplas perspectivas para a discussão, mais vasta, sobre a relação entre
sociedade e natureza que, sem dúvida, se encontra por trás do debate de Ratzel sobre
o Estado (ou, mais amplamente, a política) e o “solo”, o espaço. La Blache
ressalta que ainda restam muitas dúvidas sobre o campo da geografia política,
pois “não se percebe claramente qual lugar lhe pertence entre as diferentes
ciências que têm por objeto comum decifrar~a fisionomia da Terra”(p. 99). Deixando
para um segundo plano as questões políticas, em sentido estrito, La Blache enfatiza
a questão básica, pano de fundo, quem sabe, de toda a Geografia: o papel das “influências
geográficas” na história. Ele começa por questionar os historiadores que,
embora reconheçam inicialmente o peso dessas influências, aos poucos vão considerando-as
negligenciáveis. “Seguramente”, ele afirma, “a emancipação pela qual o homem
pouco a pouco se liberta do jugo das condições locais, é uma das lições mais
instrutivas que nos proporciona a história”. No entanto, ao mesmo tempo,
sempre, “civilizado ou selvagem, ativo ou passivo, o homem, nestes diferentes
estados, não deixa de fazer parte integrante da fisionomia geográfica do globo”.
Em primeiro lugar, portanto, constata-se que o homem é parte indissociável da fisionomia,
do espaço geográfico terrestre, seu componente indissociável. Não há mais como separar
geografia física e geografia humana, natureza e sociedade. O homem “joga um
papel de causa” na geografia à qual ele pertence. Mesmo nas poucas áreas que
ele não habita, “a ação preponderante que exerce sobre o mundo da vida não
deixa, em certa medida, de se fazer sentir”. (p. 99) O homem entra na “batalha”
com a natureza “para dirigi-la segundo seus próprios fins”. Ele “somente
triunfa sobre a natureza pela estratégia que ela lhe impõe e com as armas que
ela lhe fornece”. Neste amálgama permanente sociedade/natureza em curso no
final do século XIX, o grande “artesão” é o “europeu moderno”, em sua obra já
então antecipara dos atuais processos de globalização, na medida em que
“tende a uniformizar, se não o planeta inteiro, pelo menos cada uma das zonas
do planeta”. Trata-se de uma “força sutil e flexível”, mas capaz de “perturbar
profundamente” a economia e o aspecto da superfície da Terra. Em síntese,
conclui La Blache, enquanto “agente biológico incomparável”, “é bem mais como
ser dotado de iniciativa que como ser sofrendo passivamente as influências
exteriores que o homem possui um papel geográfico”. (p. 100). Outra crítica de
caráter “relativo” ao pensamento de Ratzel é feita no que tange ao organicismo
presente na obra do autor. Embora La Blache não prescinda da analogia
organicista em seus trabalhos, ele ressalta aqui o exagero com que muitas vezes
esta perspectiva é utilizada:
“Existe uma palavra da qual seria bom não abusar, mas que o Sr. Ratzel
usa com razão ao falar dos Estados - a noção de organismo vivo”. (p. 108) A
cidade e o Estado a ele se parecem, mas acumulam múltiplas causas no seu
desenvolvimento, tomando-se cada vez mais complexos. Daí a necessidade de nunca
se estudar entidades como o Estado de uma forma isolada (tal como a noção de
organismo às vezes indica). Surge aqui uma outra ênfase importante feita por La
Blache, no sentido de um tratamento geográfico, sempre, multi-escalar. Ele propõe,
por exemplo, trabalhar-se numa escala acima da dos Estados com a noção de
“regiões políticas”, como a da Europa Ocidental (da qual excluía a Inglaterra e
sua “talassocracia”) e a região das estepes da Ásia Central, da China à Rússia
e ao Irã. Concluindo (afinal, esta se pretende apenas uma introdução ao
trabalho do autor), vê-se a preocupação de Vidal de La Blache em não isolar a
geografia política como mais um dos “anexos” da geografia (numa crítica
antecipada à estrutura “em gavetas” de alguns geógrafos que, mais tarde, viriam
a se denominar “lablacheanos”): por
sobre os aspectos especiais da geografia botânica, zoológica, política ou humana,
há, envolvendo-os todos, o que podemos denominar a geografia da vida. As transformações
que o homem realiza na superfície da Terra indicam leis gerais que presidem as
diversas manifestações da vida. (...) Combinam-se, enfim, de uma maneira
íntima, com as formas terrestres e as condições climáticas. A geografia humana
ou política deve assim ser concebida como fazendo parte de um conjunto. Não se
trata de um simples capítulo anexo acrescentado a outros, ela mergulha com
todas as suas raízes na geografia geral. (p. 103- 104). Muito mais do que uma
crítica “possibilista” ao “determinismo” de Ratzel, nos termos simplistas de
Lucien Febvre, trata-se de uma perspectiva epistemológica ampla, que defende a não
fragmentação da Geografia, nem em termos de valorização de ramos específicos
(seja a geografia física, seja a geografia política), nem em termos de ênfase a
uma escala prioritária (como a do Estado).