sexta-feira, 17 de junho de 2016

GEOGRAFIA POLÍTICA DE RATZEL E LA BLACHE



POLÍTICA DE RATZEL E LA BLACHE


Em primeiro lugar, é muito importante perceber que “Geografia Política”, na
interpretação que La Blache faz a partir do comentário da obra de Ratzel, torna-se bastante distinta da concepção que dela construímos nos nossos dias. Em suas próprias palavras, numa nota do presente artigo, o autor afirma:
A geografia política constitui, em sentido estrito, um desenvolvimento especial da
geografia humana. Nas aplicações da geografia ao homem, trata-se sempre do homem por sociedades ou por grupos, de modo que se pode crer autorizado a dar ao nome de geografia política um sentido mais amplo, e estendê-lo ao conjunto da geografia humana. (VIDAL DE LA BLACHE, 1898)
De saída observa-se que La Blache, ao ampliar a noção de Geografia Política, estendendo-a “ao conjunto da geografia humana”, diminui o peso da questão fundamental analisada por Ratzel em sua “Geografia Política”: a relação entre o Estado e o espaço, o “solo”. Aliás, mais do que o debate sobre o Estado, o texto de La Blache enfatiza o da “sociedade”, da “humanidade” ou dos “grupos humanos” em sua relação com o espaço, a natureza. Assim, a grande questão se torna, de forma genérica, os vínculos entre o homem e o meio, a sociedade e a natureza, e não, de forma mais específica, entre o Estado e o espaço, como defendia Ratzel: “ o que permanece por fazer, a partir de agora, a fim de alçar a um nível superior o conjunto da geografia política, somente pode vir do estudo comparativo das relações que empreendem o Estado e o solo”. (RATZEL, 1988 - 1897)
A “guinada” lablacheana faz com que a centralidade dada por Ratzel ao Estado seja
substituída pela relação mais geral entre a sociedade, o homem, o meio, a natureza. Em outros termos, ainda mais amplos: em última instância, é sobre a unidade entre a Geografia Física e a Geografia Humana que La Blache se refere, pelo menos na primeira parte do seu texto. Vidal de La Blache demonstra em vários momentos a sua preocupação com a cientificidade da Geografia, preocupação que, ele ressalta, é partilhada com Ratzel, pois este “procura agrupar os fatos e extrair leis, a fim de colocar à disposição da geografia política um fundo de ideias sobre o qual ela possa viver”. (p. 98 no texto original) A diferença é que o racionalismo ratzeliano é mais enfático, enquanto para La Blache, “na mobilidade perpétua das influências que se intercambiam entre a natureza e o homem seria sem dúvida uma ambição prematura querer formular leis”, embora ele reconheça que “princípios de método” estejam se revelando. (p. 111) A sua preocupação primeira é no sentido de “adaptar” os “fatos da geografia física” aos da “geografia política” (entendida como geografia humana). O autor lembra que esta empreitada foi buscada por Ratzel a partir da constatação da necessidade de agrupar e coordenar os fatos “esparsos” da geografia política em sua relação com a geografia física. O problema é que, na busca destas “leis” podemos “provar algumas hesitações”, pois há “proposições que parecem apresentar uma forma dogmática com pouca relação com a relatividade dos fenômenos” (p. 99). É aqui que La Blache abre a discussão diante da qual vai posicionar seu “relativismo” para compreender as relações entre sociedade e condições naturais e para o qual, bem mais tarde(1922), o historiador Lucien Febvre irá cunhar de forma simplificada o termo possibilismo. La Blache, em meio a muitos elogios, desenvolve uma crítica sutil, que nunca explicita claramente o “dogmatismo” de Ratzel. Ele parece enfatizar a necessidade de definir melhor o campo da geografia política através de sua relação com a geografia no seu conjunto. A ampla gama de “observações e de fatos”, destacados na obra de Ratzel, só poderá ser devidamente aproveitada à luz de uma definição clara da geografia política, “tomando precisa a natureza da relação que a une ao conjunto da geografia”. Pois é desta relação que “depende o método a ser seguido, em particular o discernimento a ser praticado entre os fatos que ela deve reivindicar como seu patrimônio, e aqueles que ela deve eliminar como parasitas”. (p. 99) La Blache, aqui, parece colher ao mesmo tempo os louros e os dilemas de sua opção por uma geografia política em sentido amplo, liberta das especificidades da questão do Estado. A vantagem desta abordagem é que ela abre amplas perspectivas para a discussão, mais vasta, sobre a relação entre sociedade e natureza que, sem dúvida, se encontra por trás do debate de Ratzel sobre o Estado (ou, mais amplamente, a política) e o “solo”, o espaço. La Blache ressalta que ainda restam muitas dúvidas sobre o campo da geografia política, pois “não se percebe claramente qual lugar lhe pertence entre as diferentes ciências que têm por objeto comum decifrar~a fisionomia da Terra”(p. 99). Deixando para um segundo plano as questões políticas, em sentido estrito, La Blache enfatiza a questão básica, pano de fundo, quem sabe, de toda a Geografia: o papel das “influências geográficas” na história. Ele começa por questionar os historiadores que, embora reconheçam inicialmente o peso dessas influências, aos poucos vão considerando-as negligenciáveis. “Seguramente”, ele afirma, “a emancipação pela qual o homem pouco a pouco se liberta do jugo das condições locais, é uma das lições mais instrutivas que nos proporciona a história”. No entanto, ao mesmo tempo, sempre, “civilizado ou selvagem, ativo ou passivo, o homem, nestes diferentes estados, não deixa de fazer parte integrante da fisionomia geográfica do globo”. Em primeiro lugar, portanto, constata-se que o homem é parte indissociável da fisionomia, do espaço geográfico terrestre, seu componente indissociável. Não há mais como separar geografia física e geografia humana, natureza e sociedade. O homem “joga um papel de causa” na geografia à qual ele pertence. Mesmo nas poucas áreas que ele não habita, “a ação preponderante que exerce sobre o mundo da vida não deixa, em certa medida, de se fazer sentir”. (p. 99) O homem entra na “batalha” com a natureza “para dirigi-la segundo seus próprios fins”. Ele “somente triunfa sobre a natureza pela estratégia que ela lhe impõe e com as armas que ela lhe fornece”. Neste amálgama permanente sociedade/natureza em curso no final do século XIX, o grande “artesão” é o “europeu moderno”, em sua obra já então antecipara dos atuais processos de globalização, na medida em que “tende a uniformizar, se não o planeta inteiro, pelo menos cada uma das zonas do planeta”. Trata-se de uma “força sutil e flexível”, mas capaz de “perturbar profundamente” a economia e o aspecto da superfície da Terra. Em síntese, conclui La Blache, enquanto “agente biológico incomparável”, “é bem mais como ser dotado de iniciativa que como ser sofrendo passivamente as influências exteriores que o homem possui um papel geográfico”. (p. 100). Outra crítica de caráter “relativo” ao pensamento de Ratzel é feita no que tange ao organicismo presente na obra do autor. Embora La Blache não prescinda da analogia organicista em seus trabalhos, ele ressalta aqui o exagero com que muitas vezes esta perspectiva é utilizada:
“Existe uma palavra da qual seria bom não abusar, mas que o Sr. Ratzel usa com razão ao falar dos Estados - a noção de organismo vivo”. (p. 108) A cidade e o Estado a ele se parecem, mas acumulam múltiplas causas no seu desenvolvimento, tomando-se cada vez mais complexos. Daí a necessidade de nunca se estudar entidades como o Estado de uma forma isolada (tal como a noção de organismo às vezes indica). Surge aqui uma outra ênfase importante feita por La Blache, no sentido de um tratamento geográfico, sempre, multi-escalar. Ele propõe, por exemplo, trabalhar-se numa escala acima da dos Estados com a noção de “regiões políticas”, como a da Europa Ocidental (da qual excluía a Inglaterra e sua “talassocracia”) e a região das estepes da Ásia Central, da China à Rússia e ao Irã. Concluindo (afinal, esta se pretende apenas uma introdução ao trabalho do autor), vê-se a preocupação de Vidal de La Blache em não isolar a geografia política como mais um dos “anexos” da geografia (numa crítica antecipada à estrutura “em gavetas” de alguns geógrafos que, mais tarde, viriam a se denominar “lablacheanos”):  por sobre os aspectos especiais da geografia botânica, zoológica, política ou humana, há, envolvendo-os todos, o que podemos denominar a geografia da vida. As transformações que o homem realiza na superfície da Terra indicam leis gerais que presidem as diversas manifestações da vida. (...) Combinam-se, enfim, de uma maneira íntima, com as formas terrestres e as condições climáticas. A geografia humana ou política deve assim ser concebida como fazendo parte de um conjunto. Não se trata de um simples capítulo anexo acrescentado a outros, ela mergulha com todas as suas raízes na geografia geral. (p. 103- 104). Muito mais do que uma crítica “possibilista” ao “determinismo” de Ratzel, nos termos simplistas de Lucien Febvre, trata-se de uma perspectiva epistemológica ampla, que defende a não fragmentação da Geografia, nem em termos de valorização de ramos específicos (seja a geografia física, seja a geografia política), nem em termos de ênfase a uma escala prioritária (como a do Estado).